Atlantica

Andava no domingo depois das 10 pela praia de Copacabana quando brotou um samba na cabeca. Pensei em perde-lo depois de passado o momento.

O medo, esse fator tao motivador me decidiu a comprar lapis e papel. De pronto.

Parei e perguntei por algum supermercado nas redondezas.
-Na proxima esquina, respondeu o ambulante.

No caminho, uma senhora de mais de 60 anos, cabelinhos brancos, baixa e cara redonda interrompeu meu passo pra pedir dinheiro, coisa frequente na zona sul carioca.

A gente passa por tantos que acostuma a ignora-los. Mas talvez por estado de criacao, aberto, parei.

-A senhora lembra de algum samba antigo ?

Ela fez cara de que nao entendeu bem a pergunta mas farejou boa chance de ganhar um trocado. Provavelmente o motivo de sua dispersao por alguns segundos.

Ao retornar, sorriu, normalizou e olhou longe, dizendo nao lembrar pois ficava envergonhada de mostrar a voz.

-Quero ouvir um samba antigo, canta pra mim ? Reforcei a ideia com "Quero".

Quero eh poder.

Respondeu que quando crianca estudava em escola soh de meninas. Todas riam quando cantava - Ai, ai, ai ai, tah chegando a hora...

- Porque ? Perguntei curioso pois jah ouvira essa marchinha varias vezes pela boca de minha mae.

-Porque eu cantava: Aiii, ai, ai ai, ai ai aiiiiiiii tah chegando a hora... Repetiu o ai ai ai pra que eu entendesse, rindo da lembranca.

Alegre enfim.

Em um dia bem longe de hoje acelerou a musica pra colocar mais enfase em alguns "ais". Pelo jeito era algo realmente novo pois as amigas riram. Ela era "doida" me contou.

Serah que pouco se brincava antigamente de alterar os versos - acelerando ou extendendo pra incorporar novas tendencias ? Ou seria meu proprio estado de criacao conectando com um momento no qual alguem criava algo tambem ?

Entreguei-lhe cinco reais. Nao sei se eh muito. Somei seus anos, sua simpatia e sua aparicao no meio do meu samba.

O ato teve bencao grande pois pude ouvir seu "deus o abencoe e obrigado" varias vezes, ateh chegar no fim da rua onde estava o supermercado Extra.

Super. Mercado.
Setor de materiais escolares.
Lapis com borracha na ponta ?
Nem pensar.

O jeito foi a lapiseira.
O caderninho ? Foi facil.

Na prateleira ao lado havia um conjunto pronto e acabado: lapis, borracha, apontador e caneta. Tudo ajuntadinho. Otimo!

Pensei que seria uma alternativa ateh ver o preco.
-R$ 11,79.

Fiquei pasmo. Depois questionador. Cheguei no indignado.
R$ 11,45 ???
Nao seria muito caro?

Nao dah pra estudar. Quem diria compor samba.

O Extra seria contra a educacao? A pergunta me pareceu absurda. Talvez nao. Serah que cobrar consciencia dos que vendem tambem eh um dever?

Fui ao caixa e perguntei do gerente. Nao havia. Mas tinha o subcontravice.

Falei do suposto absurdo calmamente. Como manda minha pessoa.

O subcontravice me devolveu resposta nao muito inteligente, perola triste e corrompida:
-O Extra eh mais caro mesmo.

Ufa. Que bom saber.

Enfim, voltei a rua com lapiseira e caderneta.

Escrevia os versinhos, poucos e cantava. Parecia contente.

Nessa aura criativa onde ia escrevendo as estrofes do novo samba, uma mulher provavelmente filmando minha alteracao, conscientemente parou do meu lado e interrompeu minha caminhada recitando uma poesia em alto e bom som.

Inesperado momento.

Sai do samba pra poesia sem parada no Estacio. Trem bala japones, que talvez ligue Goiania a Brasilia com escala nas ilhas caimans.

Enquanto ouvia suas rimas e me recuperava, olhei:

Ela parecia gravida de 4 meses, mas poderia ser barriga de vida mesmo.
Melhor nao perguntar. Nao era bonita nem feia. Roupa simples. Na cara nenhuma ruga, lisinha. Tinha mais de 30.

Quando acabou as rimas perguntei:
-Que bonito, de quem eh ?
Respondeu:
- Minha. Sou poeta, cantora e muitas vezes psicologa. Trabalho aqui na Atlantica como moca de programa.

Assim mesmo. Na lata. Falado sem vergonha. Punhal pelas costas pra executar. Foi como levar tiro.

Pipocava o fato de que a mulher tinha educacao, visto sua poesia de palavras corretamente pronunciadas e com aparente consciencia. Como seria possivel ser: primeiro "moca" coisa que ela nao era, e depois de "programa"? - coisa que jah fui. Por profissao.

-Como assim moca de programa ? perplexo exigi explicacoes.

Sua resposta, digna do samba que nascia, deu motivo pra escrever esse diario.
Uma resposta poetica pra minha pergunta cruel :

-Construi meus castelos de areia muito proximos do mar...

O Rio de Janeiro nao mudou nada.
Eu que acordei.

Um comentário:

Ricardo Mello disse...

Do amigo Rafael:
"and the castles made of sand fall into the sea" - Jimi Hendrix... A moça realmente de boba nao tinha nada ...